A fama do Túmulo dos Vagalumes chegou em mim muito antes de eu assistir ao filme. Como uma sombra pesada, o mistério quase onírico dessa obra se instalou em mim, criando antecipação para a tragédia que eu vagamente conhecia a trama. Finalmente, depois de muito atrasar, e já impressionada com O Conto da Princesa Kaguya do mesmo diretor, Isao Takahata, decidi finalmente ver o filme.
Eu não estava pronta…
Ambientado nos últimos meses da 2ª Guerra Mundial, O Túmulo dos Vagalumes (1988) é uma estória de sobrevivência e amor acima de tudo. Baseada no conto homônimo publicado em 1967, a história é de natureza semi-autobiográfica, relatando momentos difíceis que seu autor, Akiyuki Nosaka, passou em sua adolescência. Falecido em 2015, Nosaka era da Yakeato Sedai – ou Geração das Cinzas, um grupo de pessoas que viveu sua adolescência na época dos bombardeios no Japão e nas ruínas subsequentes.
Como outros trabalhos produzidos por outros integrantes da Yakeato Sedai, é possível ver como o trauma perpassa sua narrativa, como as manchas da dor pintam toda a desgraça nos corações dos sobreviventes da Guerra. Com um cenário tão emocionalmente complexo e íntimo, o autor recusou-se a vender os direitos de sua obra premiada. Não achava que haveria jeito certo de adaptar a crueza dos seus sentimentos, até que foi convencido em usar animação pelo Takahata, e o resto é história.
Eu parei pela primeira vez para ver esse longa-metragem pouco depois da última cirurgia da minha mãe. Ela já descansava longe do hospital, e eu passava o dia na casa do meu parceiro. Iniciei o filme em meu computador, coloquei o fone e apertei o “play”. Imaginei que me emocionaria, porém nada nem ninguém poderia ter me preparado para o baque. Tive que interrromper quando sentimentos que eu sequer sabia que foram reprimidos vieram à tona conforme os ataques deixavam seus vestígios de destruição na cidade de Kobe, traçando no destino os últimos momentos de Seita, 14 anos, e Setsuko, 4.
Nascidos no confortável berço de um lar militar, os dois irmãos sofrem com o bombardeio estadunidense, o qual destrói suas vidas. Antes saudáveis e felizes, a Guerra arranca deles seus pais, apenas oferecendo em troca fome e doença, e, por fim a morte. A obra, inclusive, abre com a narração de Seita, “21 de setembro de 1945: aquela foi a noite que eu morri.”
Já cantei meus elogios ao Takahata outrora, entretanto, acho que sua estreia no Estúdio Ghibli superou qualquer expectativa que eu tivesse já do que já consumi dele. Há uma atenção a detalhes fenomenal na escolha de cores menos vibrantes e nas emoções traduzidas em desenhos sóbrios, simplesmente sutil e sincera. Os sentimentos são muito críveis assim como há uma fidedignidade à ambientação do Japão semi-urbano do final da Guerra. O espectador sente cada uma das desgraças na vida das duas crianças que, uma vez órfãs, prendem-se uma a outra pois criaram seu próprio mundinho no espaço entre elas.
Os atores de voz do Seita (Tsutomu Tatsumi) e da Setsuko (Ayano Shiraishi) também foram espetaculares. Fiquei muito impressionada com a amplitude emocional alcançada por artistas obviamente tão jovens. A trilha sonora é meticulosa e utilizada em momentos ideais, mantendo uma atmosfera perfeita para o desenrolar da narrativa.
A história foi construída de maneira magistral, explorando com franqueza os horrores da Guerra do ponto de vista dos civis, e também a beleza escondida em pequenos momentos de sobrevivência. Em entrevista à revista Animerica em 1994, Nosaka comentou que, no meio da destruição, aquilo que continha vida era mais destacado no olhar do órfão. “A morte estava próxima, então a sensação da vida era esmagadora.” Com uma delicadeza tamanha, Takahata adapta essas cenas de maneira elegante e respeitosa, compondo uma imagem forte e marcante para um dos melhores filmes do acervo Ghibli.
Como efêmeros vagalumes, Seita e Setsuko deixaram esse mundo sem muito viver, mas o rastro de suas luzes continua na memória de quem os viu: brilhante e singela.