Após sete semanas abordando extensivamente um seriado longevo estadunidense, uma mudança de ares parecia bem-vinda. Aproveitando a nova seleção de filmes do Estúdio Ghibli na Netflix, escolhi um que eu nada sabia a respeito: Memórias de Ontem (no original “Omohide Poro Poro”). Lançado em 1991, é o segundo filme assinado pelo Isao Takahata para o estúdio. A obra acompanha a viagem ao interior da Taeko Okajima (Miki Imai), conforme suas lembranças da infância invadem seus pensamentos no presente.
Diferentemente da maioria dos filmes do Ghibli, conhecidos por serem trabalhos de Fantasia – como A Viagem de Chihiro ou Meu Vizinho Totoro (ambos dirigidos e roteirizados pelo Hayao Miyazaki), Memórias de Ontem tem uma temática mais centrada na realidade concreta. Sua protagonista é uma mulher adulta de 27 anos, natural de Tóquio, rememorando seus 10 anos e suas preocupações da época: ciúmes, chiliques, e até menstruação. Para um país machista que obriga as funcionárias usarem salto alto como norma de etiqueta até hoje, esse tipo de narrativa em 1991 parece completamente revolucionária.
Baseando-se no mangá homônimo, um quadrinho semi-anedotal com histórias sem muita ligação entre si, Takahata consegue extrair situações verossímeis as quais desenvolvem a configuração mental da Taeko. Como essa criança cheia de manias tornou-se a mulher esforçada que anseia por trabalhar no campo e celebrar o trabalho à mão? Quais atributos da sua personalidade infantil vêm à tona no seu comportamento já adulto? De maneira não-linear, as pistas vão surgindo a partir das memórias e da reflexão da protagonista em cima delas. Apesar da Taeko não demonstrar facilmente sua vulnerabilidade, é notável como ainda carrega consigo a sua versão de 10 anos, teimosa e insegura.
No campo, a protagonista consegue explorar emoções que pareciam perdidas pela infância, desabrochar de verdade (se me permitem esse trocadilho) expondo um contraste fascinante entre o rural e o urbano. Inclusive, essa comparação parece ser uma temática que se permeia por toda a obra do autor, explorando dessa maneira seus sentimentos quanto à defesa do Meio Ambiente. Em entrevista ao portal Wired, Takahata disse o seguinte quanto ao uso desse tema em suas obras (em especial O Conto da Princesa Kaguya, tópico principal da matéria):
“É claro, a temática ambiental foi deliberada. Eu expressei isso como um tema latente em outros trabalhos também. Eu concordo genuinamente com a letra de What a Wonderful World cantada por Louis Armstrong. A vida no Japão era ao ritmo da natureza até a era moderna. Um sistema sustentável estava em vigor de maneira que as pessoas obtinham os frutos da natureza enquanto fosse permitida a sobrevivência da natureza de uma forma viável. Toda vida na Terra é cíclica – nascer, crescer, morrer, e reviver – assim como as canções que eu escrevi [para O Conto da Princesa Kaguya]. Eu considero essa a base de tudo. É por isso que eu exploro esse tema de novo e de novo.”
Com um cenário rico e visualmente interessante, a narrativa é elaborada com uma sensibilidade ímpar. Como mulher, admito que foi impressionante a execução de uma personagem mulher rodeada por questões femininas com tamanha profundidade e sinceridade. O passado, representado em cenários mais apagados, invadindo o vívido presente fez-me refletir como a minha versão infantil aparece ainda hoje, vários anos após eu me tornar adulta.
Abraçando o passado e o presente, o rural e o urbano, Takahata cria um espetáculo quieto, introspectivo, e delicado que encanta décadas após o seu lançamento. Certamente um clássico para revisitar quando sentir falta da sua criança interior.