Quando menina, um dos cenários de desenho animado que eu melhor conhecia era o subúrbio estadunidense: as casas espaçosas, com garagens entulhadas, e crianças andando de bicicleta pelas ruas seguras. Era um mundo que eu era bastante familiar, porém ainda muito distante da minha realidade, tendo em vista que eu moro numa capital de um estado brasileiro, um ambiente profundamente urbanizado. Pode checar: Os Anjinhos, Du, Dudu e Edu, Johnny Bravo, e A Vaca e o Frango mostram os mesmos cenários, ainda que sejam séries bem distintas. A exceção a essa regra, e objeto de estudo deste texto, é Ei Arnold!.
Ei Arnold! aborda o cotidiano do personagem titular de nove anos, Arnold (interpretado no Brasil pelo Fábio Lucindo), o qual mora na pensão dos seus avós. Com uma cabeça de proporções estranhas e um coração do tamanho do mundo, o menino passa os seus dias brincando e resolvendo os problemas das outras pessoas, sempre agindo como um agente conciliador. Ao longo dos seus 100 episódios e dois filmes, nosso cabeça de bigorna realizou diversos feitos, entre eles: livrar o Garoto Chocolate de sua adicção, libertar uma tartaruga do Aquário, salvar seu bairro da gentrificação, e reunir seu vizinho – o Sr. Hyuhn – com a sua filha anos após serem separados na Guerra do Vietnã.
Estreando em 1996, não havia muitos outros desenhos similares, tanto em ambientação como em questão de verossimilhança. Ainda que a cidade de Hillwood não exista de verdade e seja baseada em locais que o criador Craig Bartlett tenha morado (Brooklyn, Portland, e Seattle), ela é viva e parece muito real com suas construções curiosas e consistentes. Em entrevista ao City Lab, Bartlett comentou sobre as suas escolhas criativas relacionadas à arquitetura:
“Nós queríamos fazer o nosso próprio cantinho no mundo do entretenimento animado infantil. Nós nos perguntamos como poderíamos nos diferenciar um pouco, e o cenário apareceu como uma resposta fácil. Afinal, a maioria dos desenhos o torna suburbano ou mínimo e traz um grande foco nos personagens. Eu era um grande fã de Snoopy. Quando o especial de natal estreou na época que eu era criança, aquilo teve uma enorme influência sobre mim. […] Charles Schulz era um gênio, mas os seus cenários eram sempre minimalísticos. Você via alguns poucos móveis na sala de estar ou detalhes no jardim e a garotada estava jogando baseball num campinho vazio. Eu apenas pensei, ‘vamos fazer algo exuberante, detalhado, bem específico mesmo, e abordando uma cidade.”
Extrapolando a sua ambientação e as diversas situações que um plano de fundo urbano pode oferecer ao elenco, o coração de Ei Arnold! está de fato nas interações humanas. Nosso protagonista é basicamente um imã de pessoas carentes (provavelmente graças às suas empatia e paciência), e elas orbitam influenciando profundamente a vida uns dos outros como uma comunidade. Em especial, a valentona Helga G. Pataki (Jussara Marques), demonstra uma face mui violenta ao mundo para esconder a sua vulnerabilidade, resultado de uma criação negligente por um pai abusivo e uma mãe alcoólatra. Inclusive, o episódio o qual ela está no consultório psicológico explora de forma bastante sensível as raízes de sua agressividade, deixando uma mensagem de auto-crítica e superação que ressoa em mim muitos anos depois de vê-lo.
Ei Arnold! é um desenho animado que ainda tem grande influência sobre a minha vida. Seu contexto urbano trouxe-me às ruas de minha cidade, trazendo um gosto do que significa ser metropolitana. As crianças, herdeiras da classe trabalhadora, viviam como eu vivia, quase reais para mim. Revisitar a série fez-me apreciar ainda mais todo o trabalho da equipe pelo esforço em trazer às telas da TV um cenário tão rico com um elenco tão cheio de personalidade. Obrigada, Craig, por tornar Hillwood um pedaço meu.
Ainda que a série não esteja em serviço de streamings disponíveis no Brasil, você pode assistir ao primeiro filme na Amazon Prime